John Ames, o pastor que eu queria ter




Pastor com um rebanho de ovelhas, de Van Gogh



A morte é inevitável e, ao mesmo tempo, inesperada em nossas vidas. O rev. John Ames sabia que a sua existência estava se abreviando e decidiu eternizar, para o seu filho, com a avidez de quem não sabe quanto tempo ainda lhe resta, a sua paternidade. A sua escrita de fôlego só faz viagens entre o passado, o presente e imagina o futuro de uma forma doce, mas com alguns sabores amargos quando ele lembra que não vai poder ver o seu garoto crescer.

Às vezes, chego quase a esquecer o meu propósito ao escrever essas páginas, qual seja, contar-lhe coisas que teria lhe contado se você crescesse ao meu lado; coisas que, acredito, caibam a mim, enquanto pai, ensinar a você. (p.179)

Dessa forma, como alguém que não tem o que perder por abrir o coração e mostrar as dores e os prazeres de sua vida como pastor de uma comunidade, Ames se desnuda em seu ato de escrever. Por que John Ames é o pastor que eu queria ter?

Ames nos faz refletir sobre a forma que as ovelhas tratam os pastores, como quando ele comenta que as pessoas, em grupos, paravam de falar ou de rir quando ele se aproximava delas. Esse parece ser um comportamento universal das pessoas nas igrejas, né? Ames comenta que gostaria muito de rir com as pessoas e mostrar que ele também tem senso de humor, como qualquer um (aliás, a cena do batismo dos gatos é hilária e comprova a sua tese!).

Ele é pastor da sua família, em primeiro lugar. Ames é um esposo amoroso e um pai dedicado a cada segundo que pode desfrutar do convívio com o filho. Apesar de passar pela tristeza que foi a morte da sua primeira esposa, ele diz que a graça lhe sorriu quando trouxe Lila que, antes de se tornar a sua esposa, já era sua ovelha e foi batizada por ele.

Ela começou a vir a esta casa quando algumas das senhoras da igreja vinham descongelar o refrigerador ou levar as cortinas para lavar. Depois, passou a vir sozinha, para cuidar do jardim. Deixou-o lindo e fértil. E, uma tarde, quando a vi ali, cercada por aquelas rosas maravilhosas, perguntei: “Como poderia retribuir tudo isso?” “Você devia se casar comigo”, disse ela. E foi o que fiz. (p.273)

Um dos trechos mais bonitos do livro é quando ele fala sobre a imagem do seu filho quando chegar a velhice:

Por que será que a ideia de você velho me agrada tanto? A primeira pontada de artrite no seu joelho é algo que imagino com a maior ternura, exatamente como me senti quando você veio me mostrar o seu primeiro dente que caiu. Seja aplicado nas suas orações, meu velho. Espero que você conheça muito mais lugares do mundo do que eu, que nunca andei circulando por aí — por minha própria culpa. E espero que leia alguns dos meus livros. E que Deus abençoe os seus olhos, os seus ouvidos, e, é claro, o seu coração. Adoraria poder ajudá-lo a carregar o fardo de muitos anos. Mas o Senhor terá essa satisfação paterna. (p. 275)

John Ames tem um profundo interesse pelas ovelhas e pelo cuidado dos seus corações. Ele intercede nominalmente pelas ovelhas, especialmente quando realizava passeios pela cidade em suas madrugadas insones. Gilead nos mostra um pastor preocupado com o alimento que lhes era necessário para o crescimento e com o remédio para os corações daqueles que lhes foram confiados.

Tem sempre gente acordada à noite, com bebês chorando de cólica ou com filhos doentes; ou, ainda, pessoas brigando, preocupadas ou cheias de culpa. […] Às vezes, quando passava pela casa de uma das minhas famílias, e via as luzes acesas, pensava que talvez fosse melhor parar para ver se podia ajudar de alguma forma, mas, depois, acabava decidindo que poderia estar me intrometendo, e ia embora. […] Nos velhos tempos, podia passar por todas as ruas, pot todas as casas em cerca de uma hora. Tentava lembrar quem morava em cada uma delas e o que sabia sobre eles, o que era quase sempre muita coisa, já que vários dos que não eram meus eram de Boughton. E orava por eles. E imaginava a paz, pela qual não estavam esperando e com a qual não podiam contar, descendo sobre a sua doença, a sua briga, ou os seus sonhos. (p. 100 e 101)

Ames expressa o seu deslumbramento pelas obras da criação. Ele compartilha isso com o seu filho com o máximo de descrição e de ternura, como quando fala dos vagalumes, da tempestade, dos seus momentos de oração e contemplação do amanhecer, sempre ressaltando o quanto todos eles apontam para o Criador.

De uma certa forma, também deduzi que os relâmpagos e os trovões daquela tarde eram a Criação levando a mão ao chapéu para cumprimentá-lo, como se dissesse: ‘Que bom vê-lo aí na arquibancada, reverendo.’ Ou, talvez, perguntando: ‘Ora, reverendo, o que será que o senhor está fazendo aqui, em um evento esportivo?’. (p.60)

Fui, então, para a igreja ver a aurora surgindo, porque, para mim, essa paz é mais reparadora do que qualquer sono. É como se houvesse um estoque de quietude naquele lugar; como se qualquer silêncio que porventura houvesse ali nunca mais tivesse saído. (p. 178)

Estava tentando me lembrar o que os pássaros faziam antes de existirem os cabos telefônicos. Devia ser bem mais difícil se empoleirar ao sol, coisa que visivelmente adoram fazer. (p.218)

Ele é honesto quando trata sobre o que se passa em seu coração, mesmo correndo o risco de causar uma má impressão.

O sofrimento me parece uma parte importante da substância da vida humana. Por exemplo, neste exato momento, estou sentindo uma espécie de dor amorosa por você estar lendo isto; porque não o conheço, e porque você cresceu sem pai, pobre criança deitada ali de barriga para baixo, com Xampu cochilando em suas costas, na altura da sua cintura. Você está fazendo aqueles desenhos horríveis que vai trazer para eu admirar, e que vou admirar porque não tenho coragem de dizer uma única palavra que possa lhe deixar alguma má recordação de mim. (p. 142)

O meu coração está bem desassossegado. É estranho sentir doença e tristeza no mesmo órgão. Não há como distinguir uma da outra. Sempre tive por hábito apreciar a tristeza, isto é, ir acompanhando o seu percurso pelos ventrículos e pela aorta, para descobrir os locais onde ela se esconde. Aquele velho peso no peito, dizendo-me que há algo que merece a minha atenção, porque sei mais do que sei e preciso aprender comigo mesmo — só que, atualmente, até esse peso bom me deixa preocupado. (p. 236 e 237)

O reverendo John Ames é um exemplo de devoção e de descanso. Ao longo da narrativa, a oração e a soneca são companheiras inseparáveis. Nesse caso, a ordem dos acontecimentos é importante, pois ele sempre dizia: “vou orar e depois dormir”.

John Ames me ensinou uma linda lição sobre o perdão, quando abre o seu coração e nos mostra que os pastores também pensam mal das pessoas, são impacientes e muitas vezes intolerantes com aqueles que são mais difíceis de amar. A escrita do Ames nos mostra a obra miraculosa do perdão que só Deus nos capacita a desenvolver e faz com que ele mostre ao filho “a beleza que (Jack) traz dentro de si”, apesar de todas as coisas ruins que falavam dele.

A literatura nos conecta com o mundo real, estabelecendo pontes e fazendo com que compreendamos melhor o coração das pessoas. O reverendo John Ames é um personagem de ficção que nos constrange a viver, da melhor maneira possível, para a glória de Deus. Como representante dos pastores, certamente ele tem muito a nos revelar sobre o que é ser um pastor, mas a lição não acaba aí. Ames também nos faz pensar sobre o que os pastores esperam, pensam e sentem sobre as suas ovelhas. Se soubermos aproveitar bem, tiraremos lições preciosas que a literatura nos oferece.

A primeira vez que ouvi falar sobre Gilead, da Marilynne Robinson, foi em 2018, por recomendação de alguns amigos. Na época, por volta de 2018, quem se interessava pela leitura dessa sofria um pouco, pois só estava disponível em sites como Estante Virtual pela bagatela de um rim. O Senhor ouviu as súplicas dos leitores e fez com que a Editora Vida Nova nos presenteasse com uma linda edição de Gilead (aguardamos ansiosamente pela publicação da continuação da história!).

Fonte da imagem

Texto produzido em 7 de junho de 2022.

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